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Número recorde de venezuelanos se arrisca em uma das travessias mais perigosas do mundo rumo aos EUA

13 de outubro de 2022

Aumento de cidadãos que cruzaram o Tampão de Darién, entre Colômbia e Panamá, foi de 6.690% até o fim de setembro deste ano; haitianos são a segunda nacionalidade

Número recorde de venezuelanos se arrisca em uma das travessias mais perigosas do mundo rumo aos EUAMulher e menina seguram corda-guia durante travessia pelo Tampão de Darién – Foto: Federico Rios/NYT

Nem a fome, sede e cansaço, o risco de contrair doenças ou de sofrer violência física ou sexual ao longo de uma jornada de 106 km no meio da selva entre o Panamá e a Colômbia impediram que, até o fim de setembro, mais de 151 mil migrantes, a grande maioria venezuelanos, se arriscassem pela travessia do Tampão de Darién rumo aos EUA, uma das mais perigosas do mundo. O número já ultrapassa o recorde do ano passado, de mais de 133 mil pessoas – superior ao total acumulado em toda a década anterior. Não bastassem a selva densa e todos os obstáculos naturais, circulam por ali traficantes armados que levam grande parte da cocaína da América do Sul para os EUA.

Além do número sem precedentes de migrantes que se arriscam na travessia, há ainda uma mudança de perfil. Se, até o ano passado, os haitianos eram maioria, agora são os venezuelanos, correspondendo a mais de 70% do total. Segundo o Serviço de Migração do Panamá, houve um crescimento impressionante de 6.690% de venezuelanos atravessando o Darién quando comparados os dados de janeiro a setembro do ano passado e o mesmo período deste ano: de 1.586 para 107.692. No ano passado inteiro, os venezuelanos somaram 2.819. Já os haitianos totalizam 8.600 até agora neste ano.

Desde 2015, mais de 6,8 milhões de venezuelanos deixaram o país, segundo a ONU, rumo, principalmente, a outros países sul-americanos. Mas o agravamento da instabilidade econômica em toda a região levou aqueles que já haviam conseguido se estabelecer financeiramente em países como Colômbia e Equador a tentar a sorte nos EUA. Não por acaso, o número de venezuelanos apreendidos na fronteira Sul dos EUA bateu níveis recordes nos últimos meses.

Entre as causas citadas por Giuseppe Loprete, chefe da Missão da Organização Internacional para as Migrações (OIM) no Panamá, estão o impacto socioeconômico da pandemia e as tensões nas cadeias de suprimentos globais, causadas pela guerra na Ucrânia.

“Um número crescente vem realizando travessias perigosas a pé, inclusive através do Tampão de Darién, no Panamá, passando pela América Central e México para chegar aos EUA em busca de melhores oportunidades”, afirmou ao GLOBO. “Não podemos descartar que o forte uso das redes sociais para compartilhar vídeos de migrantes que atravessam a selva também influencie a decisão de seguir essa perigosa rota”, completou.

Publicado esta semana, um relatório da ONU mostra que cerca de 4,3 milhões de refugiados e migrantes da Venezuela têm dificuldades de acesso a alimentação, moradia e emprego formal nos países onde vivem atualmente. Para comprar comida ou evitar viver nas ruas, muitos são obrigados a recorrer ao trabalho sexual, pedir esmolas e se endividar.

No Equador, por exemplo, segundo o documento, 86% dos migrantes venezuelanos dizem não ter renda suficiente para suprir suas necessidades básicas, enquanto no Chile 13% deles vivem abaixo da linha da pobreza.

“Da Venezuela, vim para a Colômbia, trabalhei e trabalhei", disse ao New York Times Félix Garvett, de 40 anos, esperando sob uma tenda em uma praia de uma cidade litorânea colombiana antes de começar sua jornada, no mês passado. “Preciso de um futuro para meus filhos”, enfatizou.

A Colômbia, onde começa a travessia, é o país que mais recebe migrantes venezuelanos – dois milhões –, já que ambos os países compartilham uma fronteira terrestre extensa e porosa de mais de 2.219 km. Fechada desde 2019, a divisa acaba de ser reaberta, uma das promessas do novo presidente colombiano, Gustavo Petro, o primeiro de esquerda a governar o país.

Rota mais perigosa do mundo

O Tampão de Darién, região que marca a fronteira entre a Colômbia e o Panamá, é uma das rotas escolhidas pelos migrantes em direção ao Norte do continente. E uma das mais perigosas do mundo. São 5 mil km² de matas tropicais, montanhas íngremes e rios. O trajeto começa na rodovia Panamericana, que liga a maioria dos países do continente americano. Mas, nesse trecho específico, onde a rodovia é interrompida, não há estradas pavimentadas nem caminhos sinalizados.

Número recorde de venezuelanos se arrisca em uma das travessias mais perigosas do mundo rumo aos EUATampão de Darién fica entre o Panamá e a Colômbia, rota de muitos imigrantes que tentam chegar à América do Norte – Foto: Arte O Globo

Em média, os migrantes levam de quatro a seis dias para cruzar a pé a floresta pouco sinalizada, que separa o povoado de Acandí, na Colômbia, e Bajo Chiquito, no sul do Panamá. Contudo, alguns chegam a levar dez dias na trilha.

Sob o clima extremamente úmido da floresta, há rios nada tranquilos e extensos pântanos – muitos dos imigrantes são levados pelas águas ou acabam se contaminando. Para piorar, correm o risco de serem atacados por gangues, que roubam e violentam as mulheres. Segundo Helmer Charris, que atuou com Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Panamá até março, 396 mulheres foram atendidas por violência sexual de abril de 2021 a março de 2022, 68 delas apenas de janeiro a março deste ano.

“Estamos particularmente preocupados com a situação das mulheres abusadas sexualmente e que são incapazes de obter a profilaxia e o tratamento médico e psicológico de que precisam com rapidez suficiente” disse Charris, acrescentando que as venezuelanas também se queixam de maus-tratos brutais, infligidos com a intenção de humilhar, quase como em busca de vingança. [Tudo] isso obviamente afeta sua saúde física e mental e causa sofrimento psicológico significativo.

Número recorde de venezuelanos se arrisca em uma das travessias mais perigosas do mundo rumo aos EUAOlga Ramos, uma enfermeira venezuelana (esquerda), e sua família se arriscam na travessia do Tampão do Darién – Foto: Federico Rios/AFP

Segundo autoridades colombianas, mais de mil migrantes chegam diariamente ao Terminal de Transportes do Norte de Medellín, no Departamento de Antioquia – antes o fluxo era de menos de 200 por dia. De lá, seguem para a cidade fronteiriça de Acandí , onde começa a travessia. Na semana passada, o ministro da Segurança panamenho, Juan Pino, confirmou que aproximadamente 2.500 pessoas chegam diariamente na fronteira, a maioria venezuelanos.

Refugiados e migrantes de várias nacionalidades cruzam a região há décadas, mas o número disparou nos dois últimos anos. De 2010 a 2020, a média anual de travessias era de até 11 mil pessoas, segundo autoridades panamenhas. Na época, a maioria dos que se arriscavam eram cubanos.

Agora, perante o crescente número de pessoas cruzando o Tampão de Darién, a OIM, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) e parceiros locais estão aumentando a resposta no Panamá, fornecendo abrigos temporários em centros de recepção do governo, bem como colchões, cobertores, lâmpadas.

“É necessário e urgente fortalecer a cooperação regional com todos os países afetados por esses fluxos migratórios, tanto os países de origem quanto os de trânsito e destino”, afirma o chefe da missão da OIM no Panamá.

Doenças e estresse pós-traumático

A maioria dos atendidos pela MSF no país este ano chegava com doenças de pele e dores no corpo, infecções respiratórias e doenças do sistema digestivo. Também era comum encontrar pessoas com estresse pós-traumático, sintomas de ansiedade ou em situação de luto pela perda de um familiar na selva.

Há ainda o risco de os migrantes serem passado para trás pelos coiotes, que os conduzem em círculos na mata pouco sinalizada. O médico relata que alguns foram levados através da notória Loma de la Muerte, que é famosa pelas difíceis condições. Como a rota é mais longa, os guias também cobram mais. O custo triplicou: passou de US$ 300 (cerca de R$ 1.50) por pessoa para US$ 900 (cerca de R$ 4.570).

O número de mortos, por sua vez, é incerto, mas, segundo a OIM, pelo menos 30 pessoas perderam a vida no trajeto este ano. Destas, nove eram crianças – ao longo de 2022, 14.500 meninos e meninas cruzaram a rota.

“São famílias que deixam tudo para trás por desespero, em busca de uma vida melhor em outro lugar”, contou Loprete, lembrando que há poucas semanas, uma mulher chegou ao fim da trilha e não conseguiu encontrar o marido. Esses casos são frequentes, e muitas crianças chegam sem os pais também. Estamos testemunhando um número crescente dessas situações. Nossa prioridade ajudá-los o mais rapidamente possível.

Mas, apesar da dureza da jornada e dos riscos da travessia, a OIM no Panamá estima que até o final deste ano, pelo menos 200 mil pessoas, entre bebês e grávidas, terão atravessado a fronteira da selva entre Colômbia e Panamá. De lá, ainda terão de seguir até a fronteira com a Costa Rica, e, em seguida, passar por Nicarágua, Honduras, Guatemala, México até chegar aos Estados Unidos em uma viagem que pode durar mais de dois meses.

“Se eu tiver que vir mil vezes, virei mil vezes” disse ao New York Times a enfermeira venezuelana Olga Ramos, em um acampamento a vários dias de distância do fim da trilha, no meio da selva, ao lado de toda a família.

Valedoitaúnas (O GLOBO)



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